Maloca Resenha: Euphoria II
Dando continuidade ao primeiro “Maloca Resenha”, damos prosseguimento à discussão acerca da série Euphoria, que rendeu a Zendaya o Emmy de Melhor Atriz de Série de Drama. A narrativa, como já citado na parte 1 da resenha, gira em torno da personagem Rue que inclusive é a narradora.
O desenvolvimento da série é de acordo com a narrativa de Rue, é um gancho interessante, afinal, a série acompanha os momentos e de certa forma os sentimentos da protagonistas, então, fica a dúvida se ela está sóbria ou sob efeito. No entanto, esse é o maior e único diferencial na narrativa, visto que, o desenvolvimento dos fatos é linear e bem delimitado. As idas ao futuro ou voltas ao passado, quando acontecem, são bem claras e entendíveis.
Em determinado momento, a narrativa foge de Rue e evidencia outros personagens de maneira mais profunda. Desenvolvem-se os arcos: “Nate e Jules” – do romance virtual à acusação de pornografia infantil; “Traumas de Infância” – internação de Jules em hospital psiquiátrico; a origem do vício de Rue após a morte do pai e a descoberta por Nate do envolvimento do seu pai com personagens lgbt e seu acervo de gravações do ato sempre reproduzindo as mesmas práticas, ou seja, um padrão.
A série também aborda a transexualidade, com a personagem Jules que é uma adolescente de 16 anos que passou pelo processo de transição de gênero e que passa pelos conflitos da adolescência sendo uma mulher trans. Também é abordado em “Euphoria” o tráfico de drogas e o triste contexto dessa indústria que alicia menores, financia máfias e é extremamente violenta e perigosa.
Pornografia e Nudez:
Nate se passa por Tyler em um aplicativo e se envolve virtualmente com Jules. O “casal” vive um intenso romance pelo aplicativo, onde conversam diariamente e fazem confissões sobre estarem se envolvendo. No decorrer do “relacionamento” há troca de nudez. Nate, até então Tyler, marca um encontro com Jules e esta descobre que estava se envolvendo com o rapaz que abomina. Nate chantageia Jules a testemunhar no caso da agressão de Maddy onde caso não ceda seria acusada de pornografia infantil.
“Euphoria” retrata superficialmente o tema de nudez e os impactos do vazamento na vida de adolescentes, principalmente mulheres, e faz referência ainda a pornografia infantil, que é uma prática não só imoral como criminosa.
Para fins de esclarecimento a série refere-se, em verdade, a um conceito moderno e ainda pouco debatido que é o sexting, portanto, imprescindível entender o conceito e implicações da prática, cuja manifestação inadvertida tem um potencial lesivo sem precedentes, podendo desencadear diversos fatores de risco ao desenvolvimento das pessoas envolvidas, principalmente entre adolescentes e jovens.
A definição é, basicamente, a troca interpessoal, via telefones celulares e internet, de mensagens autoproduzidas com conteúdo sexualizado, podendo haver inclusão de imagens, seja por fotos ou vídeos que contenham nudismo e / ou práticas sexuais.
Vale ressaltar as vertentes do sexting para não sermos reducionistas. O fenômeno, por si só, não se constitui apenas e/ou unicamente como um fator de risco ao desenvolvimento que pode trazer riscos (vazamento), mas também se configura como uma prática legítima de expressão da sexualidade humana, segundo Agustina & Gómez-Durán. Na série, claramente, a prática enquadra-se na primeira opção. Nate, ameaça vazar as fotos de Jules, obtidas em uma suposta “relação” de confiança e tem plena consciência dos impactos da possível prática.
A solução do problema, infelizmente, está longe de ser implementada. De fato, a legislação está avançando e existe, atualmente, mais recursos para assegurar proteção e suporte às vítimas de vazamentos. No entanto, o impasse principal é como estes casos têm sido recebidos e tratados no sistema judiciário.
É notório que ainda vivemos sobre um modelo patriarcal e moralista, onde as vítimas, principalmente as mulheres, são frequentemente colocadas na condição de “responsáveis por seus atos”. Por isso, muitas vítimas não buscam ajuda e sofrem por não contarem com uma rede de proteção que as acolha e proteja. Em “Euphoria” Jules cede e não denuncia por conta dos riscos que imaginou correr quanto ao seu futuro justamente porque, muito provavelmente, seria desacreditada.
Traumas na infância:
Em “Euphoria” os personagens são bem desenvolvidos, todos carregam mágoas e fraquezas. Nesse sentido, os traumas de infância e como repercutiram na “vida adulta” são latentes. Descobre-se a origem do vício de Rue, qual seja, uso sem prescrição médica dos medicamentos do seu pai que lutava contra um câncer terminal. Revela-se a descoberta de Jules como uma menina trans aos 11 anos e a sua internação em um hospital psiquiátrico pela sua mãe. E por fim a descoberta por Nate de um acervo de vídeos amadores protagonizados pelo seu pai e inúmeros parceiros sexuais, onde a prática era roteirizada estabelecendo um padrão beirando o sadismo.
Todas essas cenas são de uma carga dramática e emocional muito acentuada. Se comprova que a série é, de fato, madura e não teen embora ambientada no High School.
Para debatermos, vale discutirmos sobre os traumas na infância e a sua repercussão na vida adulta. Primeiramente, define-se trauma, segundo artigo publicado pela Clínica Dra. Rosa Basto, como tudo aquilo que deixa marcas e que impede a pessoa de “ter” uma vida normal e em pleno, retirando-lhe a energia da vida.
Ainda segundo o mesmo artigo, o trauma acontece pela incapacidade da pessoa em ultrapassar um acontecimento muito marcante. Ou seja, a carga emocional foi mais intensa do que aquela pessoa pode suportar. Dessa forma, a maneira de enfrentar a situação foi a menos adequada.
Por fim, informa o artigo, que o comprometimento de um trauma irá depender da intensidade da violência do evento traumático, das capacidades e habilidades mentais da pessoa para elaborar emocionalmente e mentalmente a situação em que está envolvida.
Obviamente, tais eventos na vida de Rue, Jules e Nate caracterizam-se como traumas de infância e repercutem na sua “vida adulta”. Nate é abusivo e um agressor em potencial. Rue é viciada em drogas, sofreu uma overdose e tem sérios problemas de sociabilidade. Jules teve um processo de descoberta conturbado e reproduz sexualmente um comportamento nocivo, tem uma vida sexual ativa e reproduz um padrão, qual seja, homens brancos, casados, héteros e que a tratem como um objeto sexual, além disso, entende-se como refém do anonimato e da marginalização.
Para concluir, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 40 milhões de pessoas com idade inferior a 15 anos são vítimas, todos os anos, de violência e privações em todo o mundo. 30% a 60% dos maus tratos acontecem no seio familiar. Cerca de quatro milhões de adolescentes foram vítimas de violência grave e nove milhões testemunharam atos de violência. São dados perturbadores.
Transexualidade:
Jules é uma adolescente de 16 anos que desperta muitas emoções em Rue. Não se sabe até que ponto Jules é responsável ou não afetivamente pelo que desperta na protagonista e nem se tem tal consciência. Jules é uma mulher trans com os dilemas próprios que lhe pertencem por sê-lo.
Hunter Schafer interpreta Jules. Assim como sua personagem Hunter é uma mulher transsexual. Em entrevista a Variety Fair Magazine a atriz falou sobre a personagem Jules e sobre como ser uma mulher trans não é limitador. Um dos fatores que a fizeram a aceitar o papel em Euphoria foi a identidade sexual de Jules não ser o foco da personagem. “Precisamos de mais papéis onde pessoas trans não estão lidando apenas com serem trans; elas são trans enquanto lidam com outros problemas. Nós somos muito mais complexos do que nossa identidade.”
Vale trazermos a discussão para o nosso país. A transexualidade no Brasil é um tema extremamente negligenciado e abordagem escolhida pelo Estado e sociedade é a invisibilidade e o assassinato.
Quando quantificado a realidade é alarmante. Segundo reportagem do site “Brasil de Fato” tendo como base o novo dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) o Brasil continua a ser o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo. A maioria das mortes em território brasileiro foi registrada na região Nordeste. No entanto, em relação a números absolutos, São Paulo foi o estado que mais matou essa população no ano passado, com 21 assassinatos. O Ceará aparece logo em seguida, com 11 casos.
Ainda segundo o site de notícias, outro dado revelado pelo levantamento explicita a gravidade da violência: 80% dos assassinatos apresentaram requintes de crueldade, ou seja, a maioria das mortes ocorreram após violência excessiva. Do total, apenas 8% dos casos tiveram suspeitos identificados.
Quanto ao perfil das vítimas, segundo a reportagem, o dossiê também apresenta as principais características das vítimas da transfobia em 2019. Segundo a Antra, entre o total de vítimas, 80% eram negras e 97,7% do gênero feminino. A associação assinala, ainda, que uma pessoa trans tem mais chance de ser assassinada entre 15 e 45 anos. Mas, a cada ano, a idade das vítimas é ainda menor.
Jules é uma adolescente de classe média e americana, de fato, imprescindível guardar as devidas proporções, para se ter uma discussão justa. Ser trans no Brasil, país que não só exclui como mata essas pessoas, é totalmente diferente do retratado na série. A série retrata a marginalização da pessoa trans, a submissão a objetificação e anonimato em troca de “afeto” e mostrou a intolerância e preconceito durante o início da transição.
Entendemos que a série fez um paralelo segmentado da população trans que não representa a grande maioria e expôs temas que de fato essa população vivencia e isso de forma “honesta” guardada a realidade da personagem, no entanto, é obvio não representar a totalidade das dores e experiências da pessoa trans nem poderia pois muito vasta.
Tráfico de drogas:
A indústria da droga é retratada na série com doses de violência, mas novamente, longe de retratar o terror do tráfico de drogas. Fezco é o traficante da série, seu irmão, Ashtray, de 10 anos também é envolvido com o “negócio”. Nesse núcleo Rue vive momentos de fraqueza e recaídas e as cenas de abstinência são bem pesadas.
Novamente, válido trazer a discussão para o nosso país. A realidade da fiscalização do tráfico de drogas no Brasil tem especificidades. Por ter proporções continentais, fiscalizar é extremamente difícil. Fazemos fronteira com dez países, três dos quais são produtores de cocaína, quais sejam, Bolívia, Peru e Colômbia, fronteira também com o Paraguai, produtor de maconha.
Nosso país tem medidas fronteiríssimas magníficas, temos uma fronteira terrestre de 16.400 km e uma costa marítima de 7000 km. Em termos de logística, temos portos e aeroportos aptos para transportar cargas e pessoas para o mundo todo. Por fim, financeiramente somos o maior centro financeiro da América Latina. Por tais características, o Brasil se tornou um centro de produção e consumo de drogas, processando, importando e exportando diversos tipos de drogas.
Quando se fala nos impactos do tráfico de drogas, necessário entendermos que o narcotráfico demanda prevenção, tratamento e repressão, no entanto, urgente serem repensados tais processos e a necessidade de ações públicas conjuntas e regionalizadas que englobem saúde, segurança e ação social.
Socialmente, o tráfico de drogas é uma das principais causas do encarceramento, violência, corrupção de menores, milícias e demais mazelas sociais no Brasil. Por isso, não é rara a associação entre tais distúrbios sociais e a indústria do tráfico.
E em termos de saúde pública, deve se levar em consideração as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), a proteção social e da necessidade de tratamento multidisciplinar dos usuários que são pacientes.
Portanto, imprescindível desmistificarmos a ideia que que trata-se apenas de um problema de segurança pública e entendermos que se trata de um problema muito mais profundo e que demanda uma análise geral das estruturas do país.
Aguardamos vocês na parte final dessa primeira “Resenha Maloca”. Publicações todas as sextas, sábados e domingos. Compartilhe com o maior número de pessoas e colabore com o debate e nos acompanhem nas redes sociais: Site Portal Maloca e @portalmaloca no instagram facebook e twitter.
Veja também: Portal Maloca – Maloca Resenha: Euphoria I