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Dodó Carvalho

Não faz muito tempo, em Parintins quem era Caprichoso cantava assim:

“O brilho ô brilho O brilho ô brilho do sol Não deixe os Andes chorar Não deixe não quando os Andes choram Vai ter cheia grande Ai o povo vai penar Maromba, maromba, maromba marombê Maromba, maromba, maromba marombá

Mas eu te imploro Piedade pro povo que mora na beira do rio Boi Caprichoso exalta esse povo Que passa grande privação Mas se deus quiser Quando a vazante chegar vou pra lá E quero encontrar esse povo Com cara de gente feliz!”

Saudades de quando a preocupação estava com a cheia do rio. As geleiras da Cordilheira dos Andes derretendo (“chorando”, na letra) e a chuva abundante transbordando os rios parecem um cenário de utopia quando vemos o que tem acontecido nas últimas semanas. O Rio Madeira bateu recordes: nunca esteve tão vazio. Paralisado em 90% das atividades, vem mostrando um novo tipo de sofrimento para a população amazônida.

O fato é que, tanto em 2023 quanto em 2024, os Andes não choraram, o El Niño fez o tempo ficar ainda mais seco que o normal e o período de chuvas não foi suficiente para recompor os rios. A situação foi preocupante no ano passado e, agora, é dramática.

Os rios emitiram sinais, mas não ouvimos. Por conta disso, a Amazônia está parando. Trabalho há 40 anos na navegação do Rio Madeira e nunca vi uma situação como essa. Onde erramos, afinal?

Precisamos de um choque de realidade. Nada é permanente, nada é seguro. Para nós, o regime de chuvas sempre foi uma certeza – tanto que a preocupação era com o excesso de “choro dos Andes”. Mas é hora de nos prepararmos, daqui em diante, também para secas extremas.

É possível reverter o que está acontecendo agora e que deverá ir até o fim do ano? Infelizmente não. É possível estabelecer planos para evitar, ou ao menos minimizar, todo o sofrimento que temos vivido nos últimos meses? Com certeza sim.

O que está faltando é uma ação coordenada dos governos federal, estaduais e municipais com as agências reguladoras e com a iniciativa privada. Todos juntos podemos fazer algo para evitar que, em 2025, a única solução seja rezar para chover.

Faltou planejamento, sobrou confiança de que 2023 não iria se repetir. De fato não se repetiu: 2024 tem sido pior. Não podemos cometer o mesmo erro em 2025.

Combater as queimadas é importante, até mesmo para a saúde de todos nós. Mas é preciso ir além. O que a ciência nos diz? Será esse o novo normal? Ou no próximo ano a situação será diferente? Há 100 anos tivemos uma seca semelhante – o que estamos vivendo agora também é passageiro? Será que voltaremos ao regime de chuvas ao qual estamos acostumados?

O que sabemos é que será preciso chover muito para voltarmos à Amazônia que conhecemos. Essa recuperação não vai acontecer em questão de meses: alguns anos vão passar até que tudo seja normalizado. Mas não podemos ficar de braços cruzados esperando, sem trabalhar durante três ou quatro meses por ano até que a natureza se reequilibre.

É hora de, desde já, desenvolver ações de engenharia mais estruturantes, como um programa de dragagem permanente de todos os rios navegáveis. A dragagem precisará fazer parte do dia a dia das nossas cidades – é um cenário novo, mas temos que nos adaptar à mudança dos tempos.

Acima de tudo, precisamos de diálogo e transparência. Os estudiosos, a academia, precisam nos ajudar a entender tudo isso de forma clara. O poder público, em suas várias esferas, não tem se apresentado em uma posição de liderança para dizer o que fazer e o que esperar para os próximos meses e anos. A população fica sem entender como agir, os comerciantes não sabem se reforçam seus estoques, os transportadores não sabem como deverão modificar seus planos. Hoje, estamos todos cegos em relação ao futuro.

Precisamos de organização e coordenação para termos soluções estruturadas para a situação da seca. Soluções que não sejam apenas “apagar incêndios” (de forma literal e figurada). Desde já, precisamos cobrar das autoridades quais são os planos para 2025 em vários cenários:

·         Se a chuva voltar aos padrões normais;

·         Se tivermos mais um ano tão seco quanto 2023 e 2024;

·         Se tivermos mais chuva que agora, mas menos que o normal.

A sociedade precisa de informação. Seja qual for a solução, precisamos nos organizar. Caso contrário, gastaremos muito mais energia em emergências do que em respostas estruturantes.

Em 2024, a situação da Zona Franca de Manaus foi resolvida na última hora, com a construção de uma estação de transbordo em Itacoatiara, a um enorme custo financeiro e perda de produtividade. Mas para o ribeirinho, a situação é ainda mais séria: com o rio seco, ele perde seu ganha-pão. Como devolver a dignidade a ele sem forçá-lo a abandonar seu meio de vida e migrar para outro lugar, com um enorme custo social?

São muitas perguntas e, por enquanto, poucas respostas. Porque falta comando. Faltam lideranças que nos digam para onde ir, como fazer. Será que precisaremos mudar nosso padrão de vida, alterando, por exemplo, o período de férias escolares pois as crianças não conseguem chegar às escolas se os rios estão secos?

Os rios são o centro do nosso arranjo social. Sempre consideramos as águas como algo natural, que estava à nossa disposição. Mas agora é hora de mudar esse pensamento. Precisamos, como sociedade, nos organizar para viver segundo o ciclo das águas – seja nesse novo mundo de grande seca, seja em uma situação menos dramática.

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