A psicanálise e o isolamento na pandemia. Como mitigar o sofrimento?
Um ofício, uma arte, uma ferramenta, um método de trabalho pela fala o qual possibilita uma escuta diferenciada do sujeito no laço social, esse é o compromisso da psicanálise.
Essa escuta pode sair de seu próprio âmbito e dar lugar ao que se ouve de um sujeito, isto significa que a escuta analítica permite ou dá ensejo a se ouvir o “ruído”, o “barulho” que advém como sujeito, sujeito do inconsciente, esse é o legado freudiano.
O momento que estamos vivendo é singular para toda uma geração e tem atingido todas as gentes, em todas as partes do mundo.
Afinal, a globalização significa também a universalização de doenças virais e outras mazelas sociais.
Mas todas as gentes não estão sendo atingidas de modo semelhante, pois há defesas contra a doença Covid-19, por exemplo, que dependem do lugar e das condições onde cada um exerce suas atividades produtivas e de convivência humana, sobretudo seus locais de moradia, sua rede de saneamento e o acesso à informação científica que possa ajudar no combate a essa doença.
Uma das consequências dessa crise de saúde pública, intensificada pela crise econômica, à qual já estava em curso antes mesmo da pandemia, é o isolamento do indivíduo, aumentando campos de incertezas e inseguranças quanto às perspectivas de futuro.
Esse quadro pode acarretar em sofrimento psíquico, pois cada um traduz o isolamento de forma diferente, inclusive, o isolamento de fato e provisório, necessário ao combate à Covid-19, só vem dar força ou mostrar a materialidade do isolamento permanente que já vem tomando corpo nas relações sociais, é como se a suposta aldeia global estivesse a cada dia mais encolhida e restrita a cada casulo individual, a partir de um computador, um telefone celular, um tablet etc.
Algumas gentes entendem esse isolamento como uma ruptura tão forte que os impedem de vislumbrar seus “planos e sonhos” a médio e longo prazos, deixando-se levar por um estado de letargia, ou por um imobilismo preocupante.
Nesse caso, é preciso estar atento aos sintomas, os quais podem sinalizar que algo não anda bem, numa indicação clara do nível de sofrimento do sujeito.
Chamo atenção também para os quadros na infância, pois no afã de encontrar saídas para as crianças, muitas vezes resta como alternativa deixá-las mais tempo que o usual diante de telas de televisão, computadores, celulares, sem o devido acompanhamento, até porque os pais ou os responsáveis estão também ocupados com suas atividades domésticas e atribuições ligadas ao trabalho profissional.
Nesse caso, é preciso observar e encontrar meios de traduzir para as crianças o conteúdo daquilo que estão assistindo ou interagindo, de modo a prevenir situações ainda mais traumáticas e tentar evitar a intensificação do quadro de isolamento, já presente entre os jovens adolescentes.
Sim, é verdade que a crise afeta a todos e não pode ter seus efeitos desdenhados, contudo, o sujeito dispõe da linguagem, do legado das construções simbólicas originadas de seus laços sociais e de suas próprias construções para ajudar a dar conta dessa avalanche.
A “talking cure”, ou o tratamento pela fala, como indicado por uma paciente de Freud, pode ajudar na construção de saídas que porventura estejam bloqueadas.
A fala é a ferramenta da psicanálise, o meio pelo qual cada um pode construir modos de lidar com algo que lhe é desconhecido, mas que sente lhe causar sofrimento.
A queixa de sofrimento psíquico é o campo de atuação da psicanálise e essa atuação pode ser expandida e atingir mais gentes que precisem de uma escuta diferenciada, uma escuta singular, uma escuta pela qual, sobretudo, seja respeitado o tempo que cada um precise para se ouvir e perceber onde se situar, ou seja, onde cada um está implicado em relação ao seu próprio desejo.
Tempo parece ser uma peça central nesse tabuleiro, pois há queixas constantes sobre a falta de tempo, sobre o tempo corrido, sobre a necessidade de fazer muitas atividades ao mesmo tempo, tempo onde tudo é urgente, ou mesmo emergencial, e quando se fala em emergência é o que remete à morte.
Por que corremos, ou por que não temos tempo nem para respirar? Essa é uma queixa que se torna ainda mais constante nesses tempos de pandemia e isolamento, pois ainda que muitos estejam confinados e trabalhando em casa, sentem a premência do tempo, e a pressão sobre o sujeito parece se tornar ainda maior.
A cada mensagem recebida pelas redes sociais e não respondida, há um receio de que isto possa minar as relações, receio de não estar dando atenção suficiente a todos que demandam atenção.
Impossível exercer o que chamarei tirania da presença. Essa tirania ou essa cobrança exacerbada pode ser traduzida como um sintoma, e como tal efeito da relação sujeito e laço social.
Um sintoma pode causar muito sofrimento e pode repercutir no ambiente familiar e no convívio social em geral, muitas vezes com nefastas consequências na vida profissional, ao deixar, por exemplo, a pessoa em estado de imobilidade exasperante.
A psicanálise atua para que o sujeito encontre seu lugar nesse emaranhado de exigências do discurso, nesse emaranhado que o envolve e o deixa vulnerável, ou mesmo perdido diante de queixas tais como ansiedade, tristeza, depressão, medos, fobias, pânico etc. Muitas vezes, até mesmo diante de profundas crises de angústia, o que tende a ser ainda mais avassalador.
O suicídio é o quadro mais grave nesses estados de vulnerabilidade do sujeito diante da angústia e este tem também se alastrado em todos os lugares, camadas sociais, atingindo inclusive crianças e adolescentes.
Nesse aspecto, mais do que nunca é preciso procurar ajuda, é preciso encontrar um lugar, um lugar que privilegie a fala desse sujeito na construção de saídas possíveis para esse sofrimento psíquico.
Nesses tempos de pandemia, a psicanálise pode auxiliar a cada um na percepção de sua queixa de sofrimento, abrindo possibilidades que surgirão a partir da própria fala, da singularidade de quem se queixa, de modo a tornar possível a construção da verdade sobre os sintomas, e assim, mitigar, ou diminuir o sofrimento.
*Psicanalista, membro do Espaço Moebius, autora do livro a Formação do Analista, um sintoma da Psicanálise, pela Editora Escuta, mestre em Educação pela UFC.
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