A história da música ‘Porto de Lenha’: um dos símbolos de Manaus
De forma despretensiosa e por acaso, ‘Porto de Lenha’, criada na década de 1970 tornou-se uma espécie de hino de Manaus e do manauara.
Versos combinados com poesia, intensidade e crítica social descrevem a Manaus de antigamente, mas ainda assim, atual. O publicitário Zeca Torres, o Torrinho, e o jornalista Aldísio Filgueiras escreveram a música símbolo da Manaus que hoje conhecemos.
Em entrevista ao Portal Maloca, o cantor e compositor José Evangelista Torres Filho, ou simplesmente Torrinho, 63, contou a história por trás dos versos que muito dizem sobre a identidade manauara.
“Porto de Lenha tu nunca serás Liverpool…/ Com uma cara sardenta e olhos azuis (2x)
Um quarto de flauta/Do Alto Rio Negro/Pra cada sambista, paraquedista/
Que sonha o sucesso/ Sucesso sulista/Em cada navio/Em cada cruzeiro/
(Em cada cruzeiro)/Das quadrilhas de turistas…”
Bate-papo com Torrinho, co-autor de Porto de Lenha
Como surgiu ‘Porto de Lenha’?
“Em meados dos anos 1970, o poeta e jornalista Aldísio Filgueiras escreveu um poema de dez páginas: “Baladas, Canções, Festivalsinhas do Stress, etc”.
Esse poema foi baseado no rock “Baladas & Canções etc” que eu tinha composto anteriormente com o parceiro Wandler Cunha, premiado em 2º lugar num festival de música da época.
O poema era uma espécie de manifesto em homenagem a toda efervescência cultural daquele período em Manaus. Eu e Wandler passamos, então, a musicar vários trechos desse poema, alguns individualmente, outros a quatro mãos.
Ao vislumbrar o fragmento que dizia “Porto de lenha, tu nunca serás Liverpool/De cara sardenta e olhos azuis”, percebi a enorme potencialidade musical. A melodia fluiu naturalmente.”
Qual o significado da canção?
“É um manifesto crítico sobre a Zona Franca e o momento em que esse modelo econômico, antes do Polo Industrial, não passava de um comércio de quinquilharias de qualidade duvidosa.
Porém, isentas de impostos, vindas de várias partes do mundo. Época em que ‘sambistas-paraquedistas’ invadiam nossa cidade em ‘cada cruzeiro das quadrilhas de turistas’ atraídos pelos baixos preços dos ‘importados’. É interessante notar que a palavra ‘cruzeiro’ carregava tanto o significado dos cruzeiros marítimos que aportavam no Rodoway, quanto da então moeda corrente no país, o cruzeiro.”
Crítica, poesia e identidade cultural
Por que “nunca serás Liverpool”?
“‘Tu nunca serás Liverpool’ era uma provocação aos amazonenses saudosos do período áureo da borracha, cuja derrocada, no final do século 19, deixou a nossa economia – e a autoestima do nosso povo, que acreditava ser europeu – em frangalhos.
A realidade era uma só: nós sempre fomos índios, pois nunca tivemos ‘cara sardenta e olhos azuis’.”
É uma música atual, apesar de ter sido escrita em outros tempos?
“O mais surpreendente nessa canção são as leituras atualizadas que as novas gerações atribuem à sua mensagem original. Muitos a veem como um ‘hino’, embora sua estrutura melódica nada tenha a ver com a dos hinos tradicionais.
Enquanto nos hinos a característica principal é o enaltecimento, o elogio incondicional, em ‘Porto de Lenha’ o que predomina é a crítica social e a ironia, embora o seu argumento seja baseado no orgulho de ser índio ou caboclo.
A mensagem de Aldísio em Porto de Lenha foi um pouco responsável pelo resgate desse orgulho até então adormecido nos corações e mentes dos manauaras. E, claro, é muito gratificante vê-la sendo cantada com entusiasmo por jovens que sequer tinham nascido quando ela foi composta.”
Foto: guiamanaus24h/Gideão Soares